A Cidade e a Lezíria
Para quem tenha perdido o apetite, em resultado de alguma doença, estado depressivo insistente, paixão traída ou outra qualquer causa do género, recomendo vivamente a leitura de um conto de Eça de Queiroz intitulado Civilização (que deu origem a A Cidade e as Serras). Há um trecho desse conto que relata uma frustrante e desgastante viagem, do autor e do seu aristocrático e precioso amigo Jacinto até às distantes serranias onde se situa o Solar de Tormes, pertencente à família deste.
Finalmente chegados ao seu destino, deparam com um solar em estado bastante degradado, surpreendendo os caseiros que não os esperavam tão cedo. Para compensar a atrapalhação que tudo isto causou a “suas inselências,” sobretudo do senhor D. Jacinto, estes tentam improvisar uma ceia cuja descrição e respectiva deglutição é receita para abrir o apetite à mais anoréctica das criaturas. Os dois amigos são brindados com um repasto de onde ressalta a rescendente canja, que tinha fígados e moelas, o assombroso arroz de favas, a larga broa, o frango louro, assado em espeto de pau e outras iguarias, não esquecendo o vinho “gostoso, penetrante, vivo.” Todo o repasto temperado pelos picantes ares da serra e marcado pela singeleza da etiqueta: mesa de pinho, iluminada pela luz de uma vela meio derretida, posta com dois pratos amarelados, talher constituído por garfo de ferro e colher de pau, copos de vidro grosso e baço, tingido do roxo do “vinho que neles passara.”
Mais do que qualquer moderno procedimento farmacológico, creio que a descrição de Eça, que é leitura obrigatória, garante reverter o fastio mais enquistado.
Vem isto a propósito do almoço-convívio que a Associação de Solidariedade Recreativa e Cultural Biscainhense (ASRCB) leva a cabo no seu pavilhão, todas as quartas feiras, como forma de reunir fundos para as suas actividades, na pequena aldeia do Biscainho, concelho de Coruche. Esta iniciativa esteve suspensa durante os anos da pandemia e foi agora retomada.
À porta do pavilhão, a saudação do sempre sorridente "patrão” Joaquim Paulino. Ao entrar, aguardam o visitante duas longuíssimas mesas, com bancos corridos. Os comensais incluem gente da terra ou, por vezes, vinda de longe, como é o meu caso. Vê-se alguma rapaziada mais nova, mas, sobretudo, biscainhenses de cabelos mais ou menos brancos, sorriso limpo e trato franco e fácil.
Da ementa única consta habitualmente uma sopa, uma simples salada, um prato principal (embora as cozinheiras tenham sempre em reserva um apetite especial ou limitação de algum conviva), uma sobremesa, vinho e café. Alguns dos comensais trazem o seu azeite, o seu queijo ou o bagacito caseiro para acompanhar o café final, que partilham generosamente com quem está ao lado. Hoje tivemos um caldo verde com couves das hortas locais, burras assadas na perfeição, uma salada de alface, vinda também das hortas vizinhas, um arroz doce que faz as delícias dos apreciadores e um vinho da zona, feito de uva pisada por alguns dos presentes. Um vizinho deu-nos a provar um azeite e um bagaço da sua lavra. Nada mais simples. Para a semana há cozido, apressaram-se a avisar-nos. Os cozidos desta região não são para gente timorata. O cozido da ASRCB não foge à regra.
Fosse eu o Eça e saberia decerto cantar melhor as virtudes destes almoços da ASRCB. Pratos simples, produtos locais, confecção esmerada, uma atenção genuína ao detalhe e um trato que comove o mais indiferente forasteiro que se desloque ao Biscainho.
No Biscainho somos todos Jacinto. “Viva et regna fortunate Jacinthe!”