O Senhor Júlio

O estilo inconfundível da cerâmica de Bordallo Pinheiro, ex-libris de Caldas da Rainha onde o Sr Júlio trabalhou durante várias décadas. Foto de Filipe Gill

Haverá (há!) certamente, uma quantidade de restaurantes por esse país fora, sobre os quais poderemos dizer que, não sendo pretensiosos, oferecem uma comida de qualidade. Se calhar, uma qualidade tão boa ou melhor do que a deste de que vos quero falar. 

Mas a Tijuca do Sr. Júlio foi muito mais do que um restaurante despretensioso, com comida de excelência. 

Sim, é verdade, era um estabelecimento simples, num espaço reduzido, com cerca de meia dúzia de mesas. Sim, é verdade, era gerido com a precisão de um relógio suíço, por uma equipa mínima. Sim, é verdade, o Sr. Júlio servia uma comida simples, cuja qualidade era garantida. Comer na Tijuca era a experiência mais parecida com a de comer em casa. 

A cozinha da Tijuca estava organizada em torno de um conceito simples: deixar o cliente satisfeito. Ir à Tijuca era garantia de que sairíamos de lá satisfeitos, com a barriga confortadinha, como sói dizer-se. Também nunca falhou o serviço atencioso, o cuidado com o nosso conforto, a toalha e o guardanapo de pano, a pergunta genuína sobre o nosso grau de satisfação. A disponibilidade para servir uma qualquer combinação de ingredientes mais inusitada, fruto de um qualquer capricho do momento foi sempre total.

Mas a Tijuca e o seu proprietário eram muito mais do que tudo isto. 

Assisti eu a uma cena que ilustra bem o que o Sr. Júlio pensava sobre as regras da restauração. 

Um dia sentou-se na mesa contígua à minha uma senhora idosa, cliente habitual. Acabada a refeição o Sr. Júlio perguntou-lhe:

“Não gostou? Deixou tanta comida no prato.” 

“Não consigo comer mais, Sr. Júlio. Estava muito bom, mas estou cheia,” respondeu a senhora. 

“Então, mas deixou tanta comida. Não se preocupe, vou guardar aqui o que sobrou e logo levo-lhe lá casa, quentinho.” Não há Uber Eats ou Glovos que compitam com uma coisa destas.

Era assim, o Sr. Júlio.

A Tijuca foi também a "cantina" para os actores da companhia de Teatro com a qual eu trabalhava. A sala de espectáculos ficava mesmo do outro lado da rua e era poiso certo. Não poucas vezes, o Sr. Júlio foi um apoio vital, quando surgia algum aperto financeiro, daqueles que tendem constantemente a assombrar as Artes e os artistas.

Dizem-me que depois do trabalho no restaurante, o Sr. Júlio fazia ou faz também voluntariado numa qualquer instituição da cidade. 

A Tijuca parece não ter, infelizmente, resistido à Covid. Fechou portas. 

Dizem-me também que, depois do encerramento do seu estabelecimento, o Sr. Júlio é avistado regularmente pela cidade, mas ainda não tive o prazer de o (re)encontrar. 

Tenho saudades de ir à Tijuca, de lá saborear um dos seus pratos deliciosos ou de desafiar o sr. Júlio para um improviso, daqueles fruto do tal capricho do momento. Tenho saudade de, sempre que o serviço o permitia, trocar durante a refeição, umas palavras com ele sobre o nosso clube do coração. 

Dizem-me ainda que o n°89 irá reabrir as suas portas, com outra gerência. 

Não vou ter coragem de lá voltar, sem lá estar o Sr. Júlio.

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