A bolacha da feira

Foto de Luís Neves

A protagonista desta história é uma menina. Imagino-a naquele tempo de criança, feliz por se aproximar a visita anual à feira de Santiago, na cidade onde vivia. 

Olho através do tempo e vejo-a como se percorresse um álbum de fotografias quatro décadas depois, procurando reconhecer traços, reavivando memórias, cores e cheiros e sabores. 

Uma vez por ano, no mês de agosto e em família, a menina chegava à feira de Santiago. 

Ao longe, ouço risos e a algazarra contida num ano de espera. 

Mas os carrosséis, luzes, alegria e fantasia não chegavam para encher as medidas da nossa protagonista. Aquele dia era também o dia anual da bolacha da feira. 

Negociado com os pais que deambulavam pelos entretenimentos por falta de paciência para bichas, a menina ficava na fila da bolacha da feira aguardando vez para poder comer o biscoito Piedade, rijo de sabor a erva doce. Acredito ler na legenda de uma fotografia da época, “a bolacha da minha infância”, ao mesmo tempo que aguardava horas pela sua vez e via passar os pais já na segunda volta ao recinto da feira.

Agora que a bolacha já se vende todos os dias do ano em vários locais em Setúbal, conheci-a finalmente. Nas minhas memórias, a cidade era outra - Leiria - e a feira de maio só tinha farturas. Sem piedade, era o que havia além da montanha russa, carrinhos de choque e umas bolas io-io feitas de serradura. Talvez também uns colares de pinhão que pendurava ao pescoço… pensando bem.

Distante no tempo e no espaço, a menina ainda tem hoje o sabor da bolacha da feira de cor. No paladar e na memória afetiva. E na lição de vida dada por um biscoito, pela mão da família, de um tempo de infância em que “quando esperar era respeitar e aprender a valorizar”.

Provei as bolachas da feira num dia soalheiro de novembro de 2023, na Praça du Bocage. Investiguei e na internet encontrei a história de uma receita matriarcal de várias gerações da família Piedade que desde 1855 produz esta bolacha, “da feira”, assim conhecida por se vender até 2003 apenas durante a Feira de Santiago.  

Volto ao álbum de fotografias imaginárias, e lá está uma menina já crescida, numa fila interminável, aguardando pacientemente com um sorriso na cara, pela vez de trincar a bolacha da sua infância e guardar para o resto do ano o gosto e o aroma da erva doce. 


Sugestão musical, Coisas bunitas, Sara Tavares

Eu não digo a ninguém
Eu não digo a ninguém...

Diz-me coisas bunitas
Diz-me coisas bunitas
Sussurradas ao ouvido com sabor

Sugestão de leitura: Bolacha Piedade

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