A bolacha da feira
A protagonista desta história é uma menina. Imagino-a naquele tempo de criança, feliz por se aproximar a visita anual à feira de Santiago, na cidade onde vivia.
Olho através do tempo e vejo-a como se percorresse um álbum de fotografias quatro décadas depois, procurando reconhecer traços, reavivando memórias, cores e cheiros e sabores.
Uma vez por ano, no mês de agosto e em família, a menina chegava à feira de Santiago.
Ao longe, ouço risos e a algazarra contida num ano de espera.
Mas os carrosséis, luzes, alegria e fantasia não chegavam para encher as medidas da nossa protagonista. Aquele dia era também o dia anual da bolacha da feira.
Negociado com os pais que deambulavam pelos entretenimentos por falta de paciência para bichas, a menina ficava na fila da bolacha da feira aguardando vez para poder comer o biscoito Piedade, rijo de sabor a erva doce. Acredito ler na legenda de uma fotografia da época, “a bolacha da minha infância”, ao mesmo tempo que aguardava horas pela sua vez e via passar os pais já na segunda volta ao recinto da feira.
Agora que a bolacha já se vende todos os dias do ano em vários locais em Setúbal, conheci-a finalmente. Nas minhas memórias, a cidade era outra - Leiria - e a feira de maio só tinha farturas. Sem piedade, era o que havia além da montanha russa, carrinhos de choque e umas bolas io-io feitas de serradura. Talvez também uns colares de pinhão que pendurava ao pescoço… pensando bem.
Distante no tempo e no espaço, a menina ainda tem hoje o sabor da bolacha da feira de cor. No paladar e na memória afetiva. E na lição de vida dada por um biscoito, pela mão da família, de um tempo de infância em que “quando esperar era respeitar e aprender a valorizar”.
Provei as bolachas da feira num dia soalheiro de novembro de 2023, na Praça du Bocage. Investiguei e na internet encontrei a história de uma receita matriarcal de várias gerações da família Piedade que desde 1855 produz esta bolacha, “da feira”, assim conhecida por se vender até 2003 apenas durante a Feira de Santiago.
Volto ao álbum de fotografias imaginárias, e lá está uma menina já crescida, numa fila interminável, aguardando pacientemente com um sorriso na cara, pela vez de trincar a bolacha da sua infância e guardar para o resto do ano o gosto e o aroma da erva doce.
Sugestão musical, Coisas bunitas, Sara Tavares
Eu não digo a ninguém
Eu não digo a ninguém...
Diz-me coisas bunitas
Diz-me coisas bunitas
Sussurradas ao ouvido com sabor
Sugestão de leitura: Bolacha Piedade