Mercês Sousa Ramos

Mercês Sousa Ramos em casa com Luís Neves. Foto de Filipe Gill

Mercês, nome de mulher inspiradora. 

Conhecemos a Mercês no mercado biológico do Campo Pequeno, em Lisboa. Todos os sábados, desde 2010, traz do Alentejo profundo, da margem esquerda do Guadiana, já bem perto da fronteira com Espanha, produtos da sua horta. Alguns desconhecidos, com nomes estranhos, como os saramanhos (pequenas peras que amadurecem por altura do Santo António), outros inesperados como as beldroegas, erva daninha com que se fazem sopas e outros petiscos. É um gosto ouvi-la explicar como podemos cozinhar de forma saudável e saborosa as coisas que a terra dá, recorrendo aos produtos sazonais e a uma culinária aprendida de geração em geração.   

Nasceu em 1948, no Sobral da Adiça, concelho de Moura e a meia dúzia de quilómetros de Rosal de la Frontera. 

Era uma criança observadora. Coleccionava raízes e plantas e via como se amassava o pão e outras tarefas diárias, o que mais tarde lhe foi muito útil. Gostava de ler e de falar com a avó sobre o vento e as coisas da natureza. Aos dez anos, o pai alugou uma casa  em Moura para que pudesse continuar a estudar. Acompanhou-a a avó, uma mulher fundamental na sua formação. Foi para ciências porque gostava de fazer as experiências que vinham nos livros, queria saber o porquê das coisas. Dar seguimento e profundidade às conversas com a avó. 

O percurso académico foi exemplar. Licenciou-se em Física e encontrou na Faculdade o parceiro ideal, com quem sonhou estudar física atómica e nuclear em Paris.

A tropa do marido desfez os planos, mas Mercês seguiu em frente. Foi professora de matemática no ensino Básico e de física e química nos Ensinos Unificado e Secundário e orientou estágios do Ramo Educacional e Profissional. Foi professora na Escola Superior de Educação de Lisboa. No âmbito da sua tese de doutoramento criou, em colaboração com José Sousa Ramos, modelos de sistemas dinâmicos não lineares para aplicar na aprendizagem de conceitos  físicos.

Esteve ligada ao Ciência Viva e Coordenou o Programa de Formação de Professores do 1º Ciclo do Ensino Básico em Ensino Experimental das Ciências na Zona da Grande Lisboa.     

A progressiva tomada de consciência da importância da agricultura para a saúde humana e para os ecossistemas levaram-na a querer aproveitar as terras que herdada de pais e avós para produzir de forma menos poluente. Por isso aderiu, formalmente, ao Modo de Produção Biológica (MPB). Começou a cultivar só para consumo em casa. Quase sem querer e de forma orgânica, foi ganhando dimensão. A consciência de que a poluição no planeta tem muito a ver com os modos de produção agrícolas e a responsabilidade de mostrar aos netos (Mercês tem três filhos e quatro netos) que temos uma responsabilidade na comunidade, fê-la avançar. 

Mas para além do que se cultiva considera muito importante valorizar o que a natureza generosamente nos dá e, por isso, recolhe, comercializa, e transforma algumas das plantas silvestres que tradicionalmente se usavam na alimentação. Entre elas os catacuses, as acelgas, o agrião bravo, a arrabaça, os cardos, os saramagos, o dente-de-leão… Preservando, assim, a biodiversidade e formas de cozinhar ancestrais, mas também criando novas formas de utilização com base na tradição.

Em 2007 criou a Trilhos Verdes - Agricultura Biológica. Mercês produz tomate, abóbora, melão, melancia, marmelo, beringela, grão de bico, couve… azeitona. O Azeite da Serra da Adiça é conhecido pela baixa acidez. Orgulha-se. Tem aves de capoeira, ovelhas e cabras. Nos picos de produção, para dar escoamento aos produtos faz doces e outras iguarias, como massa de pimentão, por exemplo, na sua cozinha certificada. Faz pão.

Fala com serenidade e simplicidade do seu dia-a-dia no campo, apesar das dificuldades. Começou por ter galinhas porque o estrume pode servir de compostagem para o pomar e porque elas atacam o “caruncho negro”, e assim sucessivamente, num entrelaçado de conveniências e sabedoria que permite a sustentabilidade.  

Tem projectos para o futuro. Pelo menos dois: refazer os pomares e divulgar ciência a partir da horta. Seguir a evolução das plantas é uma grande aprendizagem. 

No seu campo na Adiça, ou no Campo Pequeno, na capital, Mercês é sempre a mesma. A menina que aprendeu a ver a mãe e a avó, a mulher da física que dá uma lição ao mundo.    

Com a mesma simplicidade que encontra soluções para melhorar a produção (se o melão está com manchas isso pode significar falta de determinado nutriente na terra), fala da Cultura Gastronómica da sua terra e explica como cozinha da mesma maneira que a sua mãe e avó: os caldos, o “caspacho”, os jantares de azeite, o borrego. Continuam a ser estes os ingredientes da sua dieta alimentar, como era na infância, afinal uma comida da terra, “pobre” em recursos mas saudável, saborosa e sustentável. O seu prato favorito é “tomatada com ovo mexido e miolo de pão”. 

– –

Mercês Correia Sousa Ramos é um mulher inspiradora. Nasceu no interior do Alentejo, viveu em Lisboa e regressou à terra Natal. Todos os dias utiliza os conhecimentos de física na sua actividade, no campo e na cozinha. Às vezes sente-se a remar contra a maré e cansada, mas com a sua voz doce e maneira de ser inteligente e educada (aliadas à sesta a seguir ao almoço) segue a sua missão. Sempre com um olhar feliz e apaziguado. Aos sábados, traz-nos ao centro de Lisboa, em cada produto ou explicação, a essência do que precisamos para viver - o amor pela terra e o respeito pelo planeta.  

Música: Restolho, de Mafalda Veiga

Previous
Previous

Arroz de Cricos no Vale do Mondego

Next
Next

Baked Sea Bream