Sobral da Adiça, primeira residência Gastronauta

Casa de Mercês. Teto de cana. Foto de Luís Neves

“Cheira bem, melhor saberá!”

Duzentos e trinta e dois quilómetros separam Lisboa do Sobral da Adiça. São duas horas e meia de distância. É esse o caminho que Mercês, a nossa anfitriã, faz todas as semanas nas madrugadas de sábado para vender os seus produtos hortícolas na feira do Campo Pequeno, e ao fim do dia, no regresso a casa. 

O tempo ali na margem esquerda do Guadiana tem outro tempo. Não é medido pelo relógio, mas pelo sol, calor, chuva, frio…  

No campo, a vida corre ao sabor dos tempos da Terra. Os elementos marcam o ritmo das tarefas. Acordamos cedo para aproveitar as temperaturas mais amenas. Na hora de maior calor, recolhemos e descansamos. 

A nossa primeira residência teve como ponto de origem o Campo Pequeno, em Lisboa. No mercado biológico onde conhecemos a Mercês. No que aprendemos sobre cada ingrediente, da forma como podíamos cozinhá-lo, no uso que tradicionalmente lhe era devido, no que representava na comunidade. Decidimos ir conhecer a terra de onde vem o que comemos e o respeito com que é trabalhada.

No Sobral da Adiça fomos recebidos em casa. A “nossa” casa, de arquitectura tradicional, tinha fogo de chão e uma cozinha tradicional, tectos de canas e um pátio com árvores de fruto (romãzeira, figueira) e videiras.

Na cozinha, “Faço como fazia a minha avó”, avisou-nos Mercês. Uma culinária simples, usando o que a terra dá. Praticamente tudo o que consome é produzido por si, incluindo o azeite. Comida de conforto e saudável, acrescento, com respeito pela natureza.

A escassez de recursos originou, com o engenho e a arte de muitas gerações, uma gastronomia “pobre” em ingredientes mas riquíssima em sabor e originalidade. Do trigo faz-se o pão, alimento fundamental e omnipresente. Da azeitona, a saudável gordura rainha. Das ervas aromáticas, um festim que transforma em sabores sofisticados os caldos. Do porco e do borrego tudo se aproveita. Do peixe menos valorizado que chega ao interior, cação ou sardinhas, receitas inesperadas para quem vem do litoral.       

Carne e peixe eram excepções na mesa dos alentejanos do Sobral da Adiça e de toda a raia alentejana. 

Era comum o chamado “jantar de azeite”, refeição de grão ou feijão, sem carne. Nas famílias com mais posses, o azeite era mais abundante. Assim se fazia também a distinção de classes. Com Feijão, foi um dos nossos jantares. 

Quando chegámos, Mercês deu-nos para matar a fome uma das mais características iguarias da cultura gastronómica da região. Estão preparados? Pois nós não estávamos mas, como verdadeiros gastronautas, mergulhámos de cabeça! E qual era a iguaria? Cabeça, precisamente, Cabeça de Borrego assada no forno. “Querem que traga inteira ou desmanchada?” Perguntou ao ler na nossa cara alguma estranheza e incómodo. A resposta era óbvia…  

Para quem não está habituado, pode parecer estranho comer a cabeça do borrego. À Mercês respondi, com todo o respeito, que não fazia parte da minha Cultura, mas que na mesa de minha casa era comum haver cabeça de pescada e de outros peixes. Assunto resolvido! Foi o nosso primeiro jantar.    

O borrego é “acerejado”, ou seja, cozido e depois segue para o forno para ganhar cor, textura e sabor. 

Na nossa residência seguimos os passos de Mercês. Fomos ao campo ver as culturas, acompanhar as tarefas de uma produtora biológica, desde a gestão da horta até à organização da cozinha certificada. É preciso preparar as entregas, dar comida às galinhas, tirar o leite às cabras, dar destino aos picos de produção, ver a maturação das uvas. Os doces, os chás, o pimentão, o pão… 

Caldos de Sardinha. Foto de Filipe Gill

E por falar em pão, ele é rei e senhor na gastronomia do Sobral. Feito de trigo produzido por vizinhos, ou de centeio (uma inovação de Mercês).  Esteve em todas as refeições. Na tomatada de ovos escalfados com batatinhas novas, no Caspacho (assim se chama no Sobral da Adiça ao gaspacho) e nos Caldos. Os caldos são mais uma das invenções de comer e chorar por mais. Mercês fez-nos, num dos dias, Caldo de Sardinha. Vindo eu da beira-mar e habituado a comer peixe de todas as formas, modos e feitios, nunca tal tinha imaginado. Na água onde se coze a sardinha, aromatizada com poejo, deita-se pão cortado ao “refelão” (grosseiramente com as mãos) e, inesperadamente, estamos perante um manjar dos deuses. É muito bom! Inesperadamente bom. 

Azeite, alho, água, algumas ervas aromáticas, pão e um pedaço de peixe ou carne (que muitas vezes apenas dá sabor) fazem a festa. 

O prato favorito de Mercês, tal como o faziam a avó e a mãe e ela própria, continua a confecionar, é “Tomatada com ovos mexidos e miolo de pão”. Havemos de experimentar da próxima vez. 

Tal como em quase todo o Alentejo, a Cultura gastronómica do Sobral é feita de (c)gaspachos, açordas, migas, caldos e jantares de azeite. Comida saudável, sabemos hoje. 

Na cozinha de Mercês, enquanto conversávamos a preparar as refeições, falávamos de cada ingrediente como se fosse personagem viva de uma história de um colectivo onde até a mais ínfima erva, que nasce espontaneamente num qualquer canto, tem um papel importante na vida da comunidade. 

“Cheira tão bem, Mercês”, repetia eu, sempre espantado, pelos aromas que tão poucos ingredientes produzem em conjunto.    


“Cheira bem, melhor saberá! Dizia a minha avó”, respondia Mercês com um sorriso nos olhos e a serenidade de quem cuida com amor e afecto da herança gastronómica do seu Alentejo. E, generosamente, a partilha com o mundo. 

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