A incansável procura do sável perdido
Quando, por milagre, encontramos no menu de um restaurante as palavras mágicas “sável com açorda de ovas,” não há que hesitar: a escolha está feita.
O sável é raro. O “alosídio”, outrora frequente desde o norte da Europa até ao Mediterrâneo ocidental, foi desaparecendo, perante o nosso olhar complacente. Em Portugal, os grandes rios já não dão guarida ao sável, que ainda vai aparecendo nos rios médios, sobretudo nos que correm mais a norte do país.
Sinto pena daqueles que nunca experimentaram esta iguaria supina e sinto ainda mais pena daqueles que desconfiam do admirável sável, descartando-o sem nunca o terem provado. Não imaginam como eu desconfio das pessoas que não gostam de sável, sem nunca o terem provado.
Uma iguaria que se perde, mas este não será porventura um problema de hoje. Já o incontornável Eça, no inevitável A Cidade e as Serras, certamente inspirado por factos reais, contava que “D. Jacinto possuía uma larga faixa do Douro, com privilégio para a pesca do sável. Jacinto não sabia, nem imaginava que houvesse sáveis... O Dr. Alípio não se admirava porque essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha brasileiro, há vinte anos, na mocidade do Sr. D. Jacinto. E hoje, segundo D. Teotónio, não valiam dois mil réis. Se já não há sáveis!…”
Quis o acaso que tropeçasse, empurrado por um amigo, no restaurante Manuel Júlio, em Barcouço. Na ementa, a presença do mágico sável com açorda de ovas. Na verdade, nem tive, sequer, tempo para hesitar.
O Manuel Júlio é um restaurante para gente crescida. Encontramos lá a lampreia, quando é o seu tempo, o bacalhau assado com batatas a murro ou à lagareiro, o cabrito, o leitão assado, a cabidela, de leitão ou de galinha, entre outras ofertas. Se vos preocupais apenas com a linha e certos valores hoje tão na moda, em matéria de nutrição, não vos aventureis. Ficai pelas simples verduras, no recato do lar, ou deixai-vos estar no futon a comer tofu.
O sável está também presente nesta ementa de Liga dos Comilões e foi a escolha inevitável. É um prato que constitui o derradeiro teste para quem o prepara e revela ao mundo o grau de maturidade degustativa do comensal.
A última vez que tinha comido sável frito com a açorda de ovas, a sério, foi no Joaquim do Biscainho. Há já bastante tempo. A cozinheira, D. Maria Antónia, explicou-nos, na altura, a arte de preparar o precioso peixinho. Não é para todos. Como o animal não abunda e as dificuldades em o preparar de forma competente são grandes, encontrá-lo, assim, e poder apreciá-lo em toda a sua plenitude, é uma experiência rara, saudavelmente mística, que substituirá, com larguíssima vantagem, estou disso certo, a tão na moda ayahuasca…
Por isso vos digo: ide, ide, pois, a Barcouço e comei o sublime alosa alosa, fritinho com a açordinha preparada com as respectivas ovas. Esquecei o preço. Um sável não são sáveis, e este vai-vos dar a sensação que as vossas papilas rebolam de prazer dentro da boca, depois do conúbio bocal.
Asseguro-vos que, no fim, saireis do Manuel Júlio de rosto limpo, olhar sereno, com uma renovada esperança no futuro da espécie. Que é um sentimento tão precioso e raro, nos dias que correm, como o sável.
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