A incansável procura do sável perdido

Sável frito com açorda no Manuel Júlio, Mealhada. Foto de Carlos Alberto Augusto

Quando, por milagre, encontramos no menu de um restaurante as palavras mágicas “sável com açorda de ovas,” não há que hesitar: a escolha está feita.

O sável é raro. O “alosídio”, outrora frequente desde o norte da Europa até ao Mediterrâneo ocidental, foi desaparecendo, perante o nosso olhar complacente. Em Portugal, os grandes rios já não dão guarida ao sável, que ainda vai aparecendo nos rios médios, sobretudo nos que correm mais a norte do país. 

Sinto pena daqueles que nunca experimentaram esta iguaria supina e sinto ainda mais pena daqueles que desconfiam do admirável sável, descartando-o sem nunca o terem provado. Não imaginam como eu desconfio das pessoas que não gostam de sável, sem nunca o terem provado.

Uma iguaria que se perde, mas este não será porventura um problema de hoje. Já o incontornável Eça, no inevitável A Cidade e as Serras, certamente inspirado por factos reais, contava que “D. Jacinto possuía uma larga faixa do Douro, com privilégio para a pesca do sável. Jacinto não sabia, nem imaginava que houvesse sáveis... O Dr. Alípio não se admirava porque essas pescas tinham sido vendidas ao Cunha brasileiro, há vinte anos, na mocidade do Sr. D. Jacinto. E hoje, segundo D. Teotónio, não valiam dois mil réis. Se já não há sáveis!…”

As terras “não valiam dois mil réis. Se já não há sáveis!…”
— D. Teotónio

Quis o acaso que tropeçasse, empurrado por um amigo, no restaurante Manuel Júlio, em Barcouço. Na ementa, a presença do mágico sável com açorda de ovas. Na verdade, nem tive, sequer, tempo para hesitar. 

O Manuel Júlio é um restaurante para gente crescida. Encontramos lá a lampreia, quando é o seu tempo, o bacalhau assado com batatas a murro ou à lagareiro, o cabrito, o leitão assado, a cabidela, de leitão ou de galinha, entre outras ofertas. Se vos preocupais apenas com a linha e certos valores hoje tão na moda, em matéria de nutrição, não vos aventureis. Ficai pelas simples verduras, no recato do lar, ou deixai-vos estar no futon a comer tofu. 

O sável está também presente nesta ementa de Liga dos Comilões e foi a escolha inevitável. É um prato que constitui o derradeiro teste para quem o prepara e revela ao mundo o grau de maturidade degustativa do comensal.

A última vez que tinha comido sável frito com a açorda de ovas, a sério, foi no Joaquim do Biscainho. Há já bastante tempo. A cozinheira, D. Maria Antónia, explicou-nos, na altura, a arte de preparar o precioso peixinho. Não é para todos. Como o animal não abunda e as dificuldades em o preparar de forma competente são grandes, encontrá-lo, assim, e poder apreciá-lo em toda a sua plenitude, é uma experiência rara, saudavelmente mística, que substituirá, com larguíssima vantagem, estou disso certo, a tão na moda ayahuasca…

Por isso vos digo: ide, ide, pois, a Barcouço e comei o sublime alosa alosa, fritinho com a açordinha preparada com as respectivas ovas. Esquecei o preço. Um sável não são sáveis, e este vai-vos dar a sensação que as vossas papilas rebolam de prazer dentro da boca, depois do conúbio bocal.

Asseguro-vos que, no fim, saireis do Manuel Júlio de rosto limpo, olhar sereno, com uma renovada esperança no futuro da espécie. Que é um sentimento tão precioso e raro, nos dias que correm, como o sável.

Música recomendada 

Orquestra de Famílias de Matosinhos - Sável (de João Lóio)

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