Os Comeres dos Ganhões

Migas de Espargos Bravos com Carne de Porco em Mora. Foto (ver nota em baixo)

Um dos livros que mais me marcaram tem nome de vento: “Suão” de Antunes da Silva. Deveria ter 17 ou 18 anos qundo o li. É uma obra do neo-realismo português, mas o que mais me impressionou foi o conceito de fome. A fome que existia numa parte importante de Portugal chamada Alentejo.

Alguns anos depois – em meados dos anos noventa – li este livro chamado “Os Comeres dos Ganhões”. Há uma passagem do livro que me marcou para sempre: os ganhões (1) recebiam no início da semana um dedal de azeite por cada dia de trabalho. Alguns deles decidiam juntar a sua ração semanal num dia para terem uma refeição decente. E nos restantes ficavam a pão e água.

O significado desta passagem, na minha interpretação, é poderoso. A dignidade e coragem daquela decisão é um exemplo notável da complexa e admirável personalidade Alentejana.

A partir daí decidi que a gastronomia que mais me interessava é aquilo a que os italianos chamam “cocina povera”. A cozinha e a comida das gentes mais pobres. Pobreza material, note-se. Mas quase sempre rica em criatividade, generosidade e dignidade.

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O meu querido cunhado Luís Barata Dias convida-me, volta e meia, para ir comer uma sopa de feijão. “Aqui só comes comida de pobre”, diz com uma modéstia desarmante. E de imediato lhe digo “esta é a comida de que mais gosto”. Não por ser pobre, mas porque é a melhor.

Porque o feijão é de sequeiro e é demolhado antes de cozer.

Porque o o azeite também é de sequeiro dos solos pobres e xistosos da Beira Baixa.

Porque o pão é bom, vá-se lá saber porquê. Trigo de sequeiro? Forno de lenha? Fermentação lenta?

Porque o naco de presunto para dar sabor é de um talho do mercado de Castelo Branco que ele conhece há anos.

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Alentejo, Beira Baixa, Trás-os-Montes, Serra do Algarve. Territórios de Portugal onde a cultura gastronómica tem fortes raízes de cocina povera. Esta é a gastronomia que sempre me fascinou, desde essa marcante leitura na adolescência. No fundo não estamos só a comer algo saboroso e especial. Estamos a manter uma ligação com as nossas origens e a prestar uma homenagem aos nossos antepassados – bem próximos – que, se não passaram fome, comiam certamente de forma muito frugal.

E a frugalidade – que não a fome – é boa para o corpo e para a alma.

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Os Comeres dos Ganhões de Aníbal Falcato Alves. Campo das Letras. Porto. 1994.

Suão, de Antunes da Silva. Publicações D. Quixote, Lisboa. 1970

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Sobre a fotografia: Feita por Luís Filipe Cunha no contexto de um projeto que juntou um admirável grupo de pessoas no início de 2015. A nossa primeira aventura foi uma ida a Mora para descobrir a história das Migas de Espargos Bravos. O projeto chamava-se GC – Gastronomic Culture e é o embrião deste projeto chamado Gastronautas.

A equipa GC na Curia em Março de 2015 (da esquerda para a direita)

Jorge Simões da Hora, o homem do som;

Luís Filipe Cunha, o autor da fotografia deste artigo;

Filipe Gill, o autor deste artigo;

Rui Pinto, o nosso anfitrião na Bairrada, não faz parte da equipa;

Luís Neves, co-Fundador dos Gastronautas;

Edgar Pinho, produtor e companheiro;

Diogo Robalo, o homem do vídeo.

Bem hajam, queridos amigos, quando marcamos os 10 anos dessa aventura.

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(1) ganhões, plural de ‘ganhão’

O Museu Municipal de Estremoz tem a informação mais completa sobre a expressão:

Os Ganhões eram trabalhadores agrícolas indiferenciados, ou seja, homens que tudo faziam no que respeita a trabalhos do mundo agrícola.

Haviam dois tipos de Ganhões – os de “pensão”, que era um trabalhador a tempo inteiro na herdade; e os “rasos” que era a grande massa dos trabalhadores rurais. Estes últimos são contratados por época de tarefa agrícola, tendo um salário mais baixo que os de “pensão”.

Nas Herdades Alentejanas de certa dimensão e trabalhos, tinham a chamada Casa do Ganhão, o local onde pernoitavam e cozinhavam (vide Cozinha dos Ganhões).

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E este dicionário do Brasil também tem, ao contrário dos dicionários de Portugal: Significado de ganhão

Que realiza qualquer tipo de trabalho para sobreviver; aquele que sobrevive de seu próprio trabalho.

https://www.dicio.com.br/ganhoes/

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Vinhão. Pois então.